A palavra plebiscito é desconhecida do brasileiro. Foram realizados no país alguns poucos, dois deles em 1963 e 1993, para escolher sistemas de governo. Opinar nos destinos do país foi algo muito raro, até recentemente, quando parte da população descobriu que através da iniciativa popular poderia exigir a criação de projetos de lei. Foi o caso do Ficha Limpa, com mais de 1,6 milhões de assinaturas de pessoas que mostraram a disposição em acabar com a festança da reeleição de políticos corruptos.
Por esse motivo, ao saber que a Câmara dos Deputados negou a realização de um plebiscito para reforma política, sugerido pela presidente Dilma, aconteceu a frustração, principalmente dos jovens.
A questão é a seguinte: oferecer referendo ao invés de plebiscito é o mesmo que oferecer um copo de água a quem está faminto.
Plebiscito é a manifestação direta da população para decisão de assuntos cruciais. Referendo é simplesmente aprovar ou desaprovar decisões do Congresso. Essa oferta dos deputados federais de usar o referendo como consolo popular em um momento onde todos desejam maior probidade política e administrativa não combina com a urgência dos problemas e passa a impressão de que tudo neste país anda a passos tão lentos, afundando-se em burocracia excessiva e retórica dispensável.
O Congresso está assumindo a figura do senhor Rodrigues repimpado em sua cadeira de balanço, no conto famoso, "Plebiscito", principalmente entre os alunos do ensino fundamental, de Artur de Azevedo.
O escritor criou uma cena que se passava no final do século XIX, no ambiente familiar onde as crianças queriam saber o que é plebiscito, com o pai que pretendia manter a todo custo o poder e controle de sua posição e a mãe observadora e crítica.
Amadurecendo politicamente graças à grande informação, o cidadão moderno não pode ser considerado infantil, como sugeriu com extremo mau gosto um deputado, ao comentar que reforma política não estaria ao alcance do entendimento do brasileiro a ponto de justificar um plebiscito. Comentário que demonstra que há mais "senhores Rodrigos" entre as leis e o povo, do que supõe a vã filosofia política, ineptos para cumprir com uma representação satisfatória na Câmara Federal e no Senado pela própria ignorância da crescente exigência de qualidade no trabalho dos políticos no Congresso. (MM)
O conto de Artur de Azevedo, Plebiscito, citado neste texto
A cena passa-se em 1890. A família está toda reunida na sala de jantar. O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade. Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga. Os pequenos são dous, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias. Silêncio. De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta: - Papai, que é plebiscito? O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme. O pequeno insiste: - Papai? Pausa: - Papai? Dona Bernardina intervém: - Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal. O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos. - Que é? que desejam vocês? - Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito. - Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito? - Se soubesse, não perguntava. O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola: - Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito! - Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei. - Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito? - Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito. - Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante! - A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!... - A senhora o que quer é enfezar-me! - Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber! - Proletário - acudiu o senhor Rodrigues - é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado. - Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira! - Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças! - Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho. O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada: - Mas se eu sei! - Pois se sabe, diga! - Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo! E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta. No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário... A menina toma a palavra: - Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso! - Não fosse tolo - observa dona Bernardina - e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito! - Pois sim - acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão - pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes. - Sim! Sim! façam as pazes! - diz a menina em tom meigo e suplicante. - Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito! Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto: - Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco. O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço. - É boa! - brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio - é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... A mulher e os filhos aproximam-se dele. O homem continua num tom profundamente dogmático: - Plebiscito... E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição. - Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios. - Ah! - suspiram todos, aliviados. - Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!.. (Contos fora de moda, 1894.) Artur Azevedo |
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